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Passaralho : uma relação metafórica entre as aves e a poesia

Passaralho : Uma Relação Metafórica Entre As Aves E A Poesia

Passaralho, não é só um palavrão de 10 letras, com seis consoantes e quatro vogais entre as quais três às e um ó, como define um monstruoso pássaro cujo nome se funde com o de um órgão sexual ou ainda aparece na vida real das pessoas como uma ave de péssimo agouro que atormenta as redações e empresas produzindo demissões em massa.
“No livro, Kleber Torres aborda, metaforicamente…’, aborda, metaforicamente, a relação entre as aves e a poesia desmistificando ao mesmo tempo as relações físicas entre a cor e o sentido e a distância entre o som o ruído ou mesmo entre a música e o grito, que se contrapõem ao silêncio absoluto do passaralho, o qual chega sempre inopinadamente, com muita surpresa revelando todas as suas impossibilidades.
Passaralho busca referenciais poéticos no canto noturno da coruja, que ecoa na floresta entre sombras, lobos e serpentes. Há ainda referências ao corvo de Edgar Allan Poe, que nunca mais grasnou dividido entre caminhos que se bifurcam indecisos antes de tudo ou depois do nada, antecipando talvez o manto estrelado do fim do mundo ou como referência aos nossos dramas existenciais no cotidiano.
A viagem poética do Passaralho se sobrepõe sobre os rios e mares, quando o rio se veste de verde, as baronesas nadam e descem até o mar com seus mistérios e segredos abissais. No livro está também uma figura que passeia na cabeça do poeta, um papagaio imitador que assovia a mesma música que escapa da vitrola e quem sabe se na cópia de uma cópia, ele imitaria a dança inocente da menina, o que só Deus o sabe, usando como escudo a capa verde & kriptoniana do astronauta louco, perdido do espaço, o que cabe no mundo de Jorge Mautner, só não se sabe se antes ou depois da chegada do passaralho.
Nesta trajetória poética, há o voo da ave, palavra que pode ser signo, astro ou nave, emergindo como uma ilha que inconsútil vaga pelos céus e desce, como uma ave digital, até o surpreendente avanço imprevisto da serpente emplumada, que chega e pousa circunstancial, parecendo uma ave noturna e passaralhal muito além do horizonte.
Ainda no campo poético, Passaralho nos revela imagens como a ave suave despida das asas mortais como um helicóptero, que paira sobre a figura mítica do unicórnio cinza vagueando pela praça, que no vácuo, acaba diluído simplesmente entre apostrofes, comas e parênteses.
Numa referência ao poeta modernista grapiúna Sosígenes Costa, emerge no livro um búfalo fosfóreo (Ilhéus) com olhos de fogo piscando como as estrelas, que domado se exibia rampeiro no ônfalo (umbigo) do mundo, entre ilhas, singrando impune o vasto oceano bem distante do magro rio com suas cachoeiras, mas que levava corpos de homens, pássaros de todos os matizes, além de vegetais e animais diluídos numa massa informe de águas enegrecidas pelo tempo numa mistura de barro e pelo sangue.
O fato é que poeta provinciano amava os pavões, em especial os vermelhos. Sosigenes, autor de ‘Pavão, Perlenda e Paraíso’, também via miragens no horizonte povoado de tatuagens e pavões assinalados, que se abriam distantes e difusos como as palhas dos coqueirais.
Um outro poema do Passaralho fala da cauda misteriosa do pavão com suas ocelas, funcionando como olhos que tudo sabem e veem auscultando o vasto mundo, que mesmo se fosse de um Raimundo drummoniano não teria rima e nem solução, emergindo caudalosa como um símbolo da renovação e da imortalidade num planeta onde a vida é marcada pela transitoriedade e pelos rigores do tempo e quiçá das intempéries.
Sem dúvida, outro poeta enfocado nas lentes agudas do Passaralho é Carlos Drummond de Andrade, não pelo seu claro enigma, nem pelos josés, mas na sua referência à eternidade a quem os morituros beijavam e adejavam com a voz obturada na garganta, antes, talvez, do pesadelo definitivo ou do gesto fatal, que sobe elegante como uma espada e cai meteórica, ágil, como a navalha afiada da guilhotina separando o pescoço pendente num ângulo obtuso e inerteantes esgares do último suspiro da ave, palavra, que pode ser um Passaralho infernal.
O livro, registra um poema dedicado a Sean Connery, o melhor James Bond da história do cinema, aparecendo numa citação dos diamantes que são eternos, mas, sem dúvida o autor prefere e opta pela eternidade de Drummond, que sabia do destino efêmero dos gladiadores. E talvez soubesse ou intuía como artista sobre aves estranhas como o monstruoso Passaralho, mas desconhecia os césares senhores de um tempo distante e que foi apagado pelas ruinas dos palácios e do Coliseu, um tempo perdido como as traças nos livros.
O iconoclasta Rogério Skylab, exímio matador de passarinhos, que poderia ter executado um enorme passaralho, é citado em dois poemas sobre o caos e a violência, lembrando que antes do soberbo apocalipse, houve o desfile de quatro cavaleiros coloridos bailando sobre a morte em seus cavalos baios, que marchavam agalopados numa fila cartaginesa e tudo acaba no pá, pá, pá. O que é natural para um artista que não perdoava nem aos inocentes juritis e assim, espantava o drama existencial, o vazio do existir.
O poeta espanhol Garcia Lorca, que morreu executado pelos asseclas do generalíssimo Franco, aparece num poema sobre antes da morte definitiva, abrupta e antecipada. Ele queria morrer sendo ontem ou talvez amanhecer, como poeta sonhava sempre em voltar talvez, como no poema, na forma de um pássaro abstrato voando com as suas próprias asas despedaçadas.
Em seu conjunto, Passaralho nos leva a refletir metaforicamente sobre o voo do pássaro ao sabor indistinto do vento ou navegando orientado pelo olfato, talvez guiado pelo instinto do pato, o que é outra história, afinal, quem paga tudo é o pato na linguagem ordinária.
No campo filosófico, Passaralho inclui uma revelação poética, pois afinal, para que servem os olhos ambíguos sempre atentos da águia que mergulha sobre a presa num gesto sem princípio, meio ou fim, desconhecendo as regras aristotélicas ainda válidas nestes dias hodiernos ou se confronta com as velhas antinomias kantianas, deixando em segundo plano a razão e a dialética, desprezando a tese, a antítese e até uma síntese qualquer.
Não escapa na obra reminiscências à infância do autor em Papa capim, curió! como elogio poético à loucura, através de uma senha para os palavrões escatológicos do louco da aldeia, que antevia o fim do mundo, mas sabia, talvez distinguir entre o silêncio, o voo absoluto do poeta itabunense Telmo Padilha e o canto encantado das aves protegidas pela sua plumagem como uma serpente distante das cores medrosas e que se ocultam da morte antecipando do momento que deflagrou o Big Bang um tempo que antecede ao passaralho com suas idiossincrasias.
O imortal Fernando Pessoa que fingia que era dor a dor que deveras sentia é citado num mesmo poema que fala do louco com sua escatologia, inventando palavras curiosas, códigos secretos e enigmas, que nos conduziam ao nome de todas as pessoas a quem xingava ou de Deus. Mas, desconhecia o Fernando, uma outra pessoa, que também não era nada, nem queria ser nada e ainda guardava no peito, hoje paralisado e estático, todos os sonhos e pesadelos do mundo.
Como o livro foi escrito durante a pandemia da covid-19, responsável por centenas de milhares de mortes numa escalada mortal, o assunto também vale por uma reflexão poética em Passaralho, quando não se sabe que faz o poeta com o seu arsenal de versos voando como as aves atemporais pairando acima do rio com sua correnteza, precipitando-se em redemoinhos de água e de barro até o lar de Netuno.
Há ainda uma homenagem aMonteiro Lobato, que não só percorreu cidades mortas como adentrou nos extensos cafezais onde os pintassilgos trilavam pelo chão banqueteando-se numa festa entre as sementes de capim, revelando o que é ou não.
James Joyce, um mágico das palavras e dos riverões serve de referência a diversos poemas como o de um tordo e uma toda com seu sopro circunstancial, ave canora, dos bons bicos de que se orgulha, e que flauteava azul com coita flébil e perde a tentativa de voo. Afinal, quem é que sabe se este Passaralho voa ou azoa?
O velho bardo irlandês questionava em termos poéticos na viagem de Ulisses: quão doce é a resposta ao canto do pássaro azul ou como isso é feito ? Mas, o que fazer quando tudo é perdido agora com a chegada deste Passaralho sem cor.
Outro poema de teor joiceano fala de coisas concretas como o mar, o vento, as folhas, o trovão, as águas, bem como as vacas mugindo sem compasso no pasto afastado, primeiro passo antes do mercado de gado, cheio de homens refestelados, permitindo a descoberta de que há música e poesia por toda parte apesar dos riscos do Passaralho que está em toda parte.
Há ainda no livro um poema esdrúxulo se referindo ao fenômeno da metempsicose ou reencarnação em seis passos equidistantes. Um outro que fala da aves de rapina, e porque não do Passaralho, pois, enquanto o sol da meia noite escurece, emergem imagens precipitadas pelas trevas e a terra treme diante dos olhos vazios.
Em Passaralho, nada escapa ao poeta como o interprete e releitor da realidade. Nele, fica a descoberta de que a terra é azul como uma caneta, um dos principais hits musicais de 2020, um ano marcado pela primeira onda da pandemia da covid-19, quando ficamos diante do espaço anódino que dá vertigens e que não redime a poesia com toda a sua complexidade.
Neste tempo de mortes abruptas e contradições cabe ao poeta, a magia dos pássaros com o seu voo solene, muito além do pouso nos astros incertos ou a opção insana dos náufragos diante da morte ou antes da vertigem passaralhal definitiva, o que nos antecipa o caos.
Assim, fica ainda para o leitor compreender o hiato entre o ato, o gesto e as vias de fato, enquanto uma nuvem difusa cruza o espaço entre o azul e o branco que se fixa na parede da sala, um reino pleno de avessos e contrastes num voo similar ao das aves noturnas ou quem sabe dos passaralhos, enquanto um inevitável ciclone rompe a esotérica barreira do som às vezes, como como uma estrela cadente ou então, disparando simplesmente a morte como uma cortina de fumaça.

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