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O DESABAFO DE UM NECRÓLATRA

O DESABAFO DE UM NECRÓLATRA

Por Walmir Rosário
– Companheiros, fomos ultrajados e nossa honra manchada. Não poderemos aceitar
passivamente tamanho achincalhe praticado contra nós, pessoas benfeitoras da
comunidade, que temos procurado levar nossa solidariedade e palavras de conforto aos
parentes dos falecidos – reclamava o inflamado orador, numa reunião realizada ainda no
século passado.
A assembleia estava perplexa, afinal de contas, o orador, até aquele momento, era pessoa
considerada dócil e equilibrada, digna de um passado exemplar e um presente por demais
pacato. O que teria provocada a ira do telegrafista aposentado pelos Correios e Telégrafos,
radioescuta dos áureos tempos da Rádio Clube de Itabuna e atual dirigente de uma
conceituada empresa gráfica? Indagava a plateia.
Para todos os presentes, o comportamento de José de Freitas, ou Poly, como é mais
conhecido, não se coadunava com o espírito de quem já havia exercido o cargo de Juiz de
Paz, resolvendo problemas da sociedade, aconselhando desafetos, unindo pessoas pelos
sagrados laços do matrimônio. Qual o motivo de tamanho furor? Logo Poly, um viúvo que
levava uma vida regrada, cuja maior extravagância que se dava ao luxo era se reunir com
os amigos para uma rodada de bate-papo na loja Imperatriz, conversando amenidades e,
no máximo, um fim de semana de descanso em Canavieiras.
E era justamente isso que intrigava os presentes. Alguma coisa estaria errada. Seria, por
acaso, essa tal de andropausa? Por acaso Poly teria alcançado a malfada senilidade?
Indagavam-se desconcertados os companheiros de assembleia.
Aos poucos, as dúvidas da plateia foram sendo desfeitas com as competentes explicações
oferecidas pelo orador: O motivo da indignação fora causada por uma crônica escrita pelo
jornalista e escritor Antônio Lopes, no Caderno Banda B, do Jornal Agora, sob o título:
“Quando eu me chamei saudade”, contando um sonho em que teria morrido num trágico
acidente automobilístico entre Buerarema e Itabuna. O grande pecado cometido pelo
cronista foi o de não ter citado, nem en passant, um só dos conceituados necrólatras de
Itabuna.
– Observem, companheiros, esse Lopes, no alto de sua sabedoria, se contentou apenas
em atrapalhar o trânsito na avenida do Cinquentenário, como se isso representasse uma
glória para um defunto, quanto mais um de cujus ilustre, em vida homem de letras,
microfone e imagem, como ele. Se convidados fôssemos, teríamos organizado um velório
sublime, digno de um homem que dedicou sua vida a congressos, seminários, saraus
literários e tertúlia tantas – desabafava Poly.
Enquanto desfiava seu rosário e ladainhas de lamentações, foi interrompido por um dos
presentes que o indagou:
– Talvez o de cujus não tenha tido essa possibilidade de nos convidar, já que estava
morto? Como poderia ele se lembrar disso? A família, sim, foi quem falhou! – defendeu.

Nem mesmo uma explicação plausível como essa foi capaz de acalmar o esbaforido Poly,
que indiferente às explicações vociferava:
– Como é que um intelectual dessa estirpe poderia deixar de nos convidar, além de outras
tantas pessoas ilustres e letradas da mais fina-flor da sociedade. Numa sentinela dessa
magnitude, poderíamos organizar eventos dos mais diversos, a exemplo de debates sobre
a vida e obra do de cujus. Acredito que o Dr. Renan Sílvio Santos não iria se furtar de
discorrer uma tese abalizada sobre os ‘Efeitos Jurídicos da Morte de um Escritor na sua
Propriedade Intelectual’. Poderíamos, ainda, convocar em Ilhéus o seu colega escritor
Jorge de Souza Araujo, com a finalidade de apresentar um eminente estudo sobre a obra
literária do defunto por ocasião dos 500 anos do Brasil; caberia ao cronista mundano
canavieirense Carlos de Carvalho delinear a trajetória literária do de cujus; e, quiçá, Mário
Augusto, hoje em São Paulo, que poderia falar na repercussão do livro ‘Buerarema falando
para o mundo’, no contexto literário nacional – explicou, Poly.
Para o dia do sepultamento, Poly já tinha planejado meticulosamente um desfile
apoteótico do féretro pela avenida do Cinquentenário, tendo a frente José Oduque
Teixeira, responsável pelo asfaltamento dessa importante avenida; a Fanfarra do Imeam
levantando os aplausos de comerciantes, comerciários e outros desocupados; e até a
participação de Vivaldo Moncorvo, seu colega [de Poly] radiotelegrafista, apresentando a
charanga, sem custos financeiros, acredita.
Porém, o melhor estaria reservado para a subida da rua Antônio Muniz, último trecho a ser
percorrido pelo cortejo antes de chegar ao Campo Santo. Naquele local já estaria
previamente postado o Coral da Ceplac, além do tenor Duduca Paixão, que cantaria a
pleno pulmões “Segura na mão de Deus e vá”, encomendando o defunto com todas as
honras possíveis e imagináveis a que, por certo, teria direito.
Sem conter mais a emoção, a voz trêmula de pesar, Poly, enfim, desabafou:
– Companheiros, em vida, esse Lopes sempre foi um cara porreta, porém, morto, se
revelou um péssimo sonhador – disse.
Dito isso, saiu da assembleia com destino à avenida do Cinquentenário, talvez para saber
se teria morrido mais uma pessoa importante da cidade e que mereceria ser velada.

Radialista, jornalista e advogado

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