À esquerda da memória! UM TRIBUTO A AMILTON GUIMARÃES DO NASCIMENTO!
Silvio Porto de Oliveira*
Havia domingos em que a linha de cal parecia uma estrada para o infinito. No
gramado de Itabuna, quando os ponteiros da arquibancada se agitavam, surgia
um lateral que não precisava de bravatas para ser gigante. Amilton Guimarães
do Nascimento jogava como quem escreve cartas: com precisão, simplicidade e
endereço certo.
Num tempo em que laterais “marcavam os pontas” e raramente atravessavam
o meio-campo, ele ousava abrir a avenida. Marcava firme, apoiava o ataque
sem alarde e cruzava de canhota como quem mede a trajetória do vento —
bola tensa, limpa, feita para agradecer de cabeça. De camisa enxuta e braços
cruzados nas fotos, parecia discreto; em campo, era decisivo.
O dia a dia de Amilton tinha dois ofícios. Na semana o balcão do banco; nos
domingos as chuteiras. E entre um carimbo e outro, o salão e o “society”, onde
também virou destaque, acostumado a acertar o gol com a perna esquerda que
lhe deu nome. Era o futebol de quem trabalha e, ainda assim, encontra fôlego
para honrar a cidade na defesa da seleção e brindar a torcida com boa técnica
nos babas das quadras e nos campos abertos principalmente no majestoso
Grapiúna Tênis Clube.
A sua rota passa pelos Janízaros de 1963, segue ao Grêmio de 1964 e 1965 e
chega ao Fluminense campeão de 1966. No meio do caminho, a Seleção
amadora de Itabuna — de 1963 a 1966 —, palco dos domingos que fez a
história de uma seleção que alegrava a cidade. Com ela, Amilton esteve nos
títulos que levaram a seleção ao tetra, ao penta e ao hexa do Intermunicipal na
sequência de 1963, 1964 e 1965. No clube tricolor, coroou o ciclo com o
campeonato de 1966. Nada mal para quem preferia a manchete da bola bem
batida ao barulho dos holofotes.
Não faltou concorrência. Albérico, Leto, Zé David, Régis — uma geração de
grandes laterais esquerdos. E, ainda assim, na maioria das vezes, lá estava ele
entre os onze, pela confiança que os técnicos entregam a quem erra pouco e
acerta nos momentos que contam. Tinha a virtude dos jogadores úteis: estava
sempre onde o jogo precisava, nem um passo a mais, nem um toque a menos.
Talvez por isso Amilton seja lembrado como “um lateral diferente”. Diferente
porque somava sem pedir licença. Porque compreendeu cedo que o futebol é
uma língua de gestos simples — antecipar, apoiar, cruzar — e que o
extraordinário mora no exato. Diferente porque abriu caminho quando quase
todos fechavam; porque a sua canhota servia os atacantes com um respeito de
artesão.
Hoje, quando a memória da cidade folheia as próprias páginas, duas imagens
nos encaram: o campeão de braços cruzados, o hexa da seleção no mesmo
gesto sereno. O retrato diz pouco a quem não o viu; a crônica tenta devolver o
que a fotografia não entrega: o barulho dos passos na lateral, a respiração
antes do cruzamento, a alegria contida de quem volta para casa sabendo que
cumpriu o ofício.
Amilton Guimarães do Nascimento é dessas presenças que sustentam a história
pelo avesso — não pelo grito, mas pelo fundamento. Na curva mansa da sua
canhota, Itabuna aprendeu que o jogo também é feito de travessias: da defesa
ao ataque, do banco ao campo, da rotina ao feito. E que a grandeza pode, sim,
ocupar a lateral. Basta ser precisa, simples e generosa como um bom
cruzamento ao segundo pau.
Amilton fez história no futebol, no dominó, na mesa de bar, no salão de dança,
na amizade leal e companheira, na conversa boa e descontraída de quem soube
viver a vida bem vivida. Foi craque de chuteiras e de coração: cruzou bolas com
a mesma precisão com que distribuía atenção e gentilezas, deixando no campo
os títulos e, na cidade, a saudade doce de um homem íntegro, elegante e
generoso.
*Médico



